Os “casos isolados” e a Comissão dos Mortos e Desaparecidos que ainda não foi (re)implementada

Revista Fórum [30/03/2024]

Publicado em 29 de março de 2024 na edição histórica 104 da Revista Fórum Semanal

Foto: Mortos e desaparecidos da ditadura militar de 64.Créditos: Reprodução

“Quem procura osso é cachorro”, disse Jair Bolsonaro (PL) em entrevista quando ainda era deputado federal. Ele se referia às buscas no Araguaia que procuravam desvendar crimes cometidos pela ditadura civil-militar instalada há 60 anos, em 1º de abril de 1964. O então parlamentar, que já ganhava notoriedade como uma espécie de “sindicalista” dos militares e das forças de segurança no Congresso, chegou até a posar ao lado de um cartaz com os mesmos dizeres.

Eram os tempos dos primeiros governos petistas e o ministério dos Direitos Humanos estava empenhado em fazer funcionar a Comissão Nacional da Verdade (CNV) e a Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos (CEMD). Já havia passado algum tempo desde o fim do regime, é verdade, mas a pauta seguia quente no debate público.

Bolsonaro, por outro lado, usava sua credencial de ex-militar – ainda que tenha tido uma espécie de aposentadoria compulsória por mau comportamento – e tentava capitalizar politicamente em cima da pauta. Há quem diga, ainda hoje, que muitos generais embarcaram na candidatura do ex-capitão reformado em 2018 por conta da sua negação da justiça de transição.

Não deu outra. Uma vez eleito, logo nos primeiros dias de mandato em 2019 extinguiu o Ministério dos Direitos Humanos e colocou em seu lugar uma excrescência: o assim chamado Ministério da Mulher, Família e dos Direitos Humanos, encabeçado por Damares Alves que acabara de ver Jesus Cristo em pleno pé de goiabeira. Poucos meses depois, em 11 de abril, assinou o Decreto 9.759 que extinguiu importantes conselhos e comissões da justiça de transição como os Grupos de Trabalho Perus e Araguaia, que compunham a CNV.

Bolsonaro, ainda parlamentar, ridicularizando os pedidos por justiça de transição. Reprodução/Facebook

Mais tarde, em 2022, aprovou a extinção da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos, que existia por lei federal desde 1995. O curioso dessa história é que o pedido para o fim da CEMD foi feito pelo próprio presidente da comissão, o advogado Marco Vinicius Pereira de Carvalho que acumulava a função de assessor de Damares. Com ele votaram Paulo Fernando Melo da Costa (ligado ao senador Magno Malta/PL-ES), o deputado federal Filipe Barros (PL-PR) e o militar Jorge Luiz Mendes de Assis. Contra a extinção votaram dois parentes de vítimas e o representante do Ministério Público Federal. O aparelhamento do órgão por Bolsonaro começou em 2019, já de olho no seu fim.

Mas o fim do governo Bolsonaro infelizmente não representou a retomada dos esforços pela justiça de transição. Pelo contrário, o governo Lula III cancelou atos oficiais em memória aos 60 anos do golpe militar, pois teríamos que deixar as “feridas do passado” para trás. A decisão divide opiniões na própria esquerda. Se por um lado Ricardo Cappelli – importante nome ligado do Ministério da Justiça de Flávio Dino – defende a posição do governo, por outro, quadros históricos do PT, como Valter Pomar, tecem duras críticas sobre o tema.

Para compreender melhor o porquê da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos não retornar à baila, entrevistamos o antropólogo Orlando Calheiros, que trabalhou na Comissão Nacional da Verdade a partir de 2014, onde integrou o Grupo de Trabalho do Araguaia. Ao lado da historiadora Cecília Adão, redigiu o capítulo referente que consta no relatório final da CNV. Entre suas descobertas, fruto de anos de pesquisa, está o fato de que durante o combate à guerrilha, em 1972, o Exército brasileiro manteve em cativeiro e escravizou o povo Aikewara, de origem tupi-guarani, que vivia no sudeste do Pará, próximo à fronteira do atual estado do Tocantins – à época ainda acoplado a Goiás.

Para Calheiros, não há interesse político no esclarecimento dos crimes da ditadura pois implicaria no reconhecimento de práticas semelhantes em tempos democráticos. Mas mais do que isso, implicaria num redesenho das próprias forças de segurança, incluindo as polícias Civil e Federal – não apenas os militares e as PMs.

O antropólogo Orlando Calheiros. Arquivo Pessoal

Calheiros conta brevemente a história da CNV

Atribuída a Dilma Rousseff, a Comissão foi, na verdade, proposta no âmbito da Política Nacional de Direitos Humanos do segundo mandato de Lula, em 2008, por conta de uma condenação do Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos,no caso de Gomes Lund, que é justamente um caso do Araguaia. O Brasil é condenado na CIDH por nunca ter esclarecido sua morte e a de outros militantes políticos durante a ditadura militar.

Graves violações a direitos humanos não prescrevem. E tem um tipo de crime muito específico, que é o desaparecimento forçado, um crime continuado. Todo dia de manhã ele se repete porque as situações daquela morte nunca foram esclarecidas. Então o Brasil é condenado por isso e resolve se antecipar a possíveis sanções, instaurando a Comissão Nacional da Verdade. A Comissão tinha um prazo específico. Ela encerraria os seus trabalhos em 2014 e existia na época uma discussão para se transformar a CNV numa instituição permanente como acontece na Argentina. As pessoas não sabem, mas a Comissão da Verdade não é uma instituição brasileira. Ela é uma instituição do direito internacional. Aconteceu na África do Sul, na Argentina, no Chile. E o Brasil foi um dos últimos países a instaurar sua CNV”, explica.

O antropólogo aponta que a derrocada da justiça de transição começou em 2015, no acender de luzes do segundo e não terminado mandato de Dilma Rousseff. À época, a presidenta se via pressionada por todos os lados e começou a ter de ceder. Mas, para além disso, ele também aponta que o próprio Lula já vinha dando declarações desde 2010, no auge da sua popularidade, em que creditava a barbárie praticada durante a ditadura não a uma questão sistemática, de desenho do Estado e das forças de segurança pelos generais – como a CNV aponta – mas como uma espécie de “desvio de conduta” de agentes da ditadura. E é justamente essa a argumentação de figuras como o ministro José Múcio, da Defesa.

“Essa tendência foi se consolidando já durante o governo Temer, quando as discussões foram completamente esvaziadas. Ele falou que do dia para a noite todo o orçamento foi embora. Literalmente do dia para a noite. Não tem mais orçamento para fazer caravana de anistia, não tem mais nada. Durante o governo Bolsonaro, na verdade, tudo isso se tornou um escárnio e até militares foram anistiados politicamente. Receberam indenização. Se reviu indenizações que foram emitidas para pessoas que participavam no movimento político. Nesse contexto, a CEMD é extinta. Mas é um longo processo, ou seja, a extinção durante o governo Bolsonaro não é um ato isolado do Bolsonaro”, avalia.

Para Calheiros e para a CNV, toda a barbárie dos porões da ditadura foram uma consequência direta da forma como o governo era montado. Ou seja, não teria como isentar a caserna.

“O problema não é o guardinha da esquina, para usar aquela famosa frase. O problema é o general. Porque o guardinha da esquina só age do jeito que age porque foi autorizado pelo general. Ele se sente autorizado pelo AI-2 e pelo AI-5. E além disso, quem é que financiava todo esse sistema? Quem que financiava uma casa em Petrópolis? As pessoas não estavam tirando dinheiro do bolso e fazendo vaquinha. Era financiado oficialmente pelo Estado brasileiro.”

Doutrina da guerra revolucionária

Quando os militares dão o golpe em 1964 implementam um regime de governo que tinha como fundamento a chamada doutrina da guerra revolucionária. Trata-se de uma ideologia militar criada pelos franceses para combater movimentos insurgentes na Argélia. A população argelina estava se revoltando contra a opressão colonial e os franceses começam a criar um sistema de gestão e um regime político para coibir focos de independência. Na ponta dessa doutrina está o entendimento de que o inimigo não usa mais um uniforme. Pelo contrário, estaria incorporado à população que se pretende governar.

“Um dos métodos usados por essa doutrina é o do medo. Você cria um aparato de terror que vai operar produzindo medo para impedir que as pessoas entrem nesses processos revolucionários, porque ‘se eu virar revolucionário eu vou morrer’. E como que se constrói esse medo? Com as ações de busca e destruição, um termo muito usado pelos EUA no Vietnã. Tem até uma música do Metallica que fala sobre isso, a Seek and Destroy. É basicamente ir para um lugar e matar todo mundo. Outro tipo de ação prevista por essa doutrina era o uso ostensivo e extensivo da tortura. A tortura tem uma finalidade de extração de informações, mas também tinha uma ideia de produzir medo, porque ninguém quer ser torturado. E as torturas vão se tornando cada vez mais elaboradas”, explica Calheiros.

O antropólogo ainda aponta que toda a indústria militar se adaptou à nova doutrina. Entre outros, começaram a surgir os chamados “helicópteros Apache”, desenhados para rápidas incursões no novo tipo de território inimigo.

“Essa doutrina chega no Brasil pela Escola das Américas, onde ocorre a formação de boa parte dos torturadores e dos generais do regime. O problema do nosso aparato de segurança vem daí. E aqui eu não estou falando só da PM, mas também da Polícia Civil e da Federal. Esse aparato não é feito, por exemplo, para coibir crimes. Ele não é feito para coibir o tráfico internacional de drogas. Ele é feito para produzir todo um sistema de medo na ponta. A Polícia Militar não existe num vácuo. O desenho da Polícia Civil, o desenho da Polícia Federal, o desenho da PM e de todos os setores de inteligência remete a essa ideia de que você está lutando contra um inimigo que se camufla e se mistura com a população. Então como é que você vai rediscutir o papel das polícias no Brasil se você não rediscute a origem disso? Como é possível você modificar um sistema cuja genética já está comprometida?”, indaga.

Crimes autorizados em época democrática

O entrevistado lembra que na mesma semana que o Lula fez sua declaração sobre os 60 anos do golpe militar, Ana Paula Oliveira – a mãe do Jonathan Oliveira e fundadora do Mães de Manguinhos, um coletivo de mães que tiveram seus filhos torturados e executados pela Polícia do Rio – viu sair a sentença que isenta o soldado da PM que efetuou sete tiros de fuzil contra o seu filho, pelas costas. A Justiça do Rio de Janeiro considerou que ele praticou homicídio culposo, sem a intenção de matar. Dias mais tarde, os PMs que atiraram e arrastaram Cláudia Silva Ferreira pelas ruas do Rio também foram inocentados.

“Esse tipo de corporativismo, que isenta o militar de suas ações, é o que faz com que a gente viva numa sociedade que discute abertamente a possibilidade do massacre e da barbárie. Mas não é apenas discussão, há também pessoas que se elegem promovendo essa barbárie, e pautando, entre outros, a criação do excludente de ilicitude para os policiais que matarem pessoas. Esse tipo de corporativismo só é possível porque tem gente relativizando ou querendo apagar a história de violações referidas aos militares”, lembra Orlando.

Recentemente, a popularidade do governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), aumentou na Baixada Santista após quase uma centena de mortos nas operações Escudo e Verão, entre 2023 e 2024. Fora do Brasil, vemos um cenário semelhante no Equador, onde após dois meses de “conflito armado interno”, 12 mil prisões e algumas execuções extrajudiciais, a popularidade do presidente Daniel Noboa também subiu. Em ambos os casos, os políticos chegaram perto dos 80% de aprovação.

“O desenho da segurança pública no Brasil foi feito pelos militares em 1964. É fundamental que se fale sobre a ditadura militar para que se entenda que esse modelo de segurança pública que a gente vive. Além de todo o processo de extermínio e de execução, nos deu o PCC, nos deu o Comando Vermelho, nos deu todas essas facções, porque tudo isso está umbilicalmente ligado. Esse processo começa nos militares, é desenhado por eles e isso não é um acidente. O que vemos hoje, as mortes na Bahia, em São Paulo e no Rio de Janeiro, nada disso é um acidente. Na verdade, isso é a máquina que os militares desenharam funcionando perfeitamente. Não podemos tratar como casos isolados. A gente vive num país que chacina policial é show biz eleitoral. Porque isso dá para a população uma impressão de que algo está sendo feito.”

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