STF: Desqualificar vítimas de crimes sexuais pode anular atos e gerar punição a advogados e juízes

Revista Fórum [23/05/2024]

Foto: Basta de violência contra a mulher – imagem ilustrativa.Créditos: Paulo H. Carvalho/Agência Brasília

São muitos os casos de crimes sexuais e agressões a mulheres que foram noticiados nos últimos anos por conta das lamentáveis estratégias jurídicas utilizadas pelas defesas dos acusados que se apoiam no machismo, na misoginia e no conservadorismo extremo para desqualificar as vítimas a partir da exposição das suas vidas íntimas. Felizmente, essas cenas deverão ficar cada vez mais raras depois que o Supremo Tribunal Federal decidiu por unanimidade nesta quinta-feira (23) que a prática é inválida.

A Corte julgou uma ação apresentada pela Procuradoria-Geral da República em dezembro passado que questionava exatamente a desqualificação e culpabilização das vítimas dentro do processo judicial. A PGR se apoiou em uma série de casos que ganharam atenção da imprensa e do Judiciário, um deles o caso Mari Ferrer [veja a seguir].

A ação pede que acusados e advogados sejam proibidos de mencionar detalhes da vida íntima das vítimas e que os juízes sejam obrigados a combater esse comportamento, determinando que respondam na Justiça por isso. Em caso de não cumprimento, os magistrados podem ser punidos. Além disso, também pede que as informações íntimas das vítimas não sirvam para afrouxar as penas dos réus condenados.

André de Camargo Aranha e Mariana Ferrer – pivôs do caso Mari Ferrer. Reprodução/Redes Sociais

A votação no STF começou com a ministra Cármen Lúcia, relatora do caso. Ela entendeu que a exploração da vida íntima e do comportamento de uma vítima como forma de defender os réus é algo que viola a Constituição e decidiu que os procedimentos judiciais devem ser anulados quando tal prática for adotada.

“O que se pretende aqui é não permitir que, por interpretações que são dadas aos dispositivos legais, haja alguma abertura para que o próprio estado-juiz e o estado que faz a investigação revitimizem a mulher”, declarou a ministra.

Cármen Lúcia, que teve seu voto seguido por todos os outros ministros da Corte, também lembrou das dificuldades que as mulheres têm até mesmo na hora de denunciar um crime sexual na delegacia, quando ouvem perguntas sobre seus comportamentos. Segundo a relatora, quando isso ocorre a vítima é revitimizada.

A ministra Cármen Lúcia, do STF. Créditos: STF/Ascom

“A forma mais fácil de fragilizar o ser humano é o medo. Isto gera o medo do agressor e da instituição”, declarou.

A magistrada também cobrou que haja igualdade de gênero na prática social, não apenas em discursos ou no texto da lei, e que a única forma de obter essa condição é por meio da educação.

Inicialmente, a decisão só valeria para casos de crimes sexuais. No entanto, os ministros decidiram que também em casos relativos à violência política de gênero e à Lei Maria da Penha também serão incluídos na decisão.

O caso Mari Ferrer

O caso Mari Ferrer foi um dos que motivou a ação da PGR. Em 2018, a modelo e influenciadora denunciou um estupro sofrido dentro de uma boate na luxuosa praia de Jurerê Internacional, em Florianópolis (SC). O autor, André de Camargo Aranha, é um empresário do setor de entretenimento.

A história ganhou a atenção dos meios de comunicação por conta do tratamento dispensado à vítima pela defesa do acusado e pelo próprio juiz do caso, Rudson Marcos, que gerou indignação pública. O acusado acabou absolvido em 2020 após uma bateria de questionamentos sobre a vida íntima de Mari Ferrer em plena audiência.

A repórter Schirlei Alves, que cobre uma série de casos que passam pela Justiça catarinense, fez uma reportagem acerca dessa audiência para o The Intercept Brasil em que utilizou a expressão “estupro culposo” (quando não há intenção de cometer o crime) como uma forma irônica de criticar a maneira com que Aranha acabou absolvido. A matéria e a expressão viralizaram dada a indignação pública acerca do caso.

“A estratégia de desqualificação e culpabilização da vítima, por vezes usada pela defesa, acaba desviando o foco do que está em discussão: o comportamento e a ação do acusado pela agressão. Questões estruturais da nossa sociedade ainda reforçam o estereótipo da ‘vítima ideal’, que seria aquela atacada na rua por um desconhecido, sendo que os dados oficiais sobre segurança pública revelam, por exemplo, que a maioria dos crimes sexuais ocorre dentro de casa e que os autores são pessoas próximas e conhecidas”, avaliou Schirlei com exclusividade para a Fórum.

Schirlei Alves. Créditos:  Anderson Coelho

Se por um lado o trabalho da jornalista impulsionou uma série de mudanças na legislação com o advento da Lei Mari Ferrer, o protocolo para julgamento com perspectiva de gênero do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e a presente decisão do STF; por outro lado, gerou processos contra ela, que pode ser presa e ter de pagar uma irreal indenização de R$ 400 mil por conta das denúncias.

“Eu acho que a decisão do Supremo é mais uma ferramenta que se soma à Lei Mariana Ferrer e ao protocolo para julgamento com perspectiva de gênero implementado pelo CNJ no que se refere à proteção de vítimas de violência. Medidas legislativas e protocolos de proteção são necessários no combate à misoginia e à revitimização de vítimas de violência. Acredito que estas ações refletem a cobrança dos movimentos sociais, da própria sociedade e do debate provocado pela cobertura jornalística da violência de gênero no Brasil”, concluiu.

Deixe um comentário