Guerras às drogas, militarização e controle dos trabalhadores: a luta antimanicomial hoje

Revista Fórum [20/05/2024]

Foto: “Manicômio nunca mais”, diz pichação no Rio de Janeiro. Reprodução

Publicado em 17 de maio de 2024 na edição 111 da Revista Fórum semanal

No último sábado, 18 de maio, foi comemorado o Dia Nacional da Luta Antimanicomial, data que rememora um movimento que começou nos anos 70 com pesquisadores e profissionais da saúde mental e familiares dos chamados “loucos” que eram depositados nos manicômios. Eles criticavam os tratamentos desumanos que eram dados aos pacientes nessas instituições e pautaram a Reforma Psiquiátrica Brasileira que só seria concluída em 2001 com a promulgação da Lei 10216 que fecharia os manicômios e traria a atenção da saúde mental para o campo da civilização.

Mas a história não acabou ali. Na atualidade a luta antimanicomial se junta com pautas sociais, ambientais e de segurança, como a chamada ‘guerra às drogas’ que irá desdobrar em militarização das forças de segurança para o controle de territórios ocupados pelas massa trabalhadoras. A principal questão que entrelaça esses elementos é a multiplicação das chamadas “comunidades terapêuticas”. Geralmente vinculadas a igrejas e instituições religiosas, muitas dessas instituições têm conseguido parcerias com o poder público para operar em nome do “salvamento” de usuários de drogas.

Mas assim como nos antigos manicômios, o público-alvo das comunidades terapêuticas são pessoas geralmente oriundas das classes menos privilegiadas e nem sempre o que se vê são exemplos de tratamento médico ou psicológico. Sobram relatos de novas violações de direitos humanos, sobretudo contra usuários de drogas oriundos das camadas mais pobres e vulneráveis. As pessoas envolvidas com a luta antimanicomial na atualidade apontam para uma volta da chamada “lógica do manicômio” nesse contexto.

Aqui na Revista Fórum já denunciamos alguns casos. Em setembro do ano passado, por exemplo, a Polícia Civil de Goiás resgatou 50 pacientes usuários de drogas da Amparo Centro Terapêutico, uma clínica gerida por um casal de pastores evangélicos em Anápolis. As vítimas tinham um amplo leque etário: de 14 a 96 anos. À época, o portal Metrópoles teve acesso aos testemunhos que algumas das vítimas deram aos investigadores. Cinco delas relataram pesadas rotinas de tortura e humilhação cujos principais alvos eram pessoas com deficiência. Os pastores teriam o costume de amarrá-las, deixá-las nuas e dar banhos compulsórios com água gelada. Todas essas práticas seriam formas de punir os pacientes considerados problemáticos.

Um dos pacientes, conhecido pelo apelido de ‘Gasolina’ e deficiente intelectual, era uma das vítimas preferenciais dos baldes de água fria. “Sempre que pedia cigarro faziam isso. Chegou ao extremo de a roupa dele ser tirada na frente de todo mundo e a cueca ser puxada para cima”, relatou um dos resgatados. Angelo e Suelen Klaus, casados e pastores da Igreja Batista Vida Nova, eram os coordenadores da instituição. A empresa estava registrada no nome de Angelo. Suelen foi presa, negou as acusações aos policiais e alegou ser apenas uma funcionária da gestão da instituição. Por sua vez, Angelo estava foragido quando o caso foi noticiado. Logo que viu a chegada da polícia, fugiu por uma mata vizinha.

Em 27 de fevereiro passado a Polícia Federal fez uma operação contra o trabalho análogo à escravidão em semelhante instituto, dessa vez em Itacoatiara no Amazonas. Segundo a PF, os responsáveis pela comunidade terapêutica submetiam os internos a condições degradantes de higiene e a trabalhos forçados, além de não receberem alimentação adequada. A imagem dos dependentes também era explorada em lives nas redes sociais para gerar engajamento e dinheiro de doações.

Além das comunidades terapêuticas, pipocam debates e leis que visam promover a internação compulsória de dependentes químicos em situação de rua em Santa Catarina, Rio de Janeiro e outros estados. Ou seja, a 23 anos da instituição da lei da Reforma Psiquiátrica e a 37 anos do “Manifesto de Bauru” (cuja publicação em 1987 demarca o próprio Dia Nacional da Luta Antimanicomial) ainda há muita luta a ser feita. É sobre isso que a Revista Fórum entrevistou Adriana Eiko Matsumoto, doutora em psicologia social pela PUC-SP e professora da Unifesp.

Adriana Eiko Matsumoto. Arquivo pessoal

Leia a seguir os principais trechos da entrevista

Controle social dos pobres e trabalhadores

É interessante notar que para a estruturação e desenvolvimento das sociedades capitalistas, instituições subsidiárias foram fundamentais. E, nesse sentido, aquelas que forjavam também um controle social da classe trabalhadora. Acho que dentro desse espectro entram as escolas, as prisões e os manicômios.

No caso dos manicômios, a situação do desviante ou daquele ser que não produzia [desempregado] e não era adequado para essa norma disciplinada de trabalhador produtivo requerido por esse sistema capitalista. Ele precisaria se encaixar de alguma forma e a inclusão pela marginalização se dava nesses espaços.

A nomeação desse sujeito como um desviante, como um louco, como alguém que não deveria fazer parte dessa sociedade, era feita não só porque não produzia, mas porque também será destituído de direitos. Então, há um processo aí que também cola a própria desumanização. Afinal de contas, humanizado deveria ser considerado o sujeito que é ativo e vai vender a sua força de trabalho.

E nesse contexto de uma instituição subsidiária à ordem capitalista, que fará o controle da classe trabalhadora, é importante definir como é essa classe. A classe trabalhadora é composta a partir da própria diversidade do chamado povo brasileiro. Então, pensando exatamente no contexto do Brasil, a fração negra da classe trabalhadora, negra e indígena, detém o número maior de elementos de aviltamentos, de exploração e também de opressão. E, portanto, são alvos de ações de controles sociais formais, pensando principalmente na política criminal penal, como também de estigmatização, patologização e segregação no campo da saúde mental.

“Holocausto brasileiro ou navio negreiro”?

Tem um texto fundamental da professora Raquel Gouveia, professora do Serviço Social da UFRJ, em que ela se questiona, holocausto brasileiro ou navio negreiro?

Dizendo que, em verdade, falar dos manicômios no Brasil é pôr em evidência uma lógica que ela nomeia como manicolonial. E que a descrição desse sujeito considerado louco, desviante, desse sujeito que deve ser levado para o interior dessas instituições totais de segregação, desse corpo que é alvo de vilipêndios, de maus-tratos, de tortura e, portanto, de desumanização, tem um lastro na nossa larga história, que é a própria produção do não humano localizado no sujeito negro – sobretudo a partir da escravização.

Nesse sentido, a gente tem que produzir essa imbricação, esse nó nas nossas leituras, frente a como se produziram as segregações pela lógica manicomial, articulando a questão de classe, raça e também gênero. Existem formas específicas de se produzir essa ‘manicolonialidade’ focada no controle de mulheres, dos corpos femininos e dos corpos masculinos.

Guerras às drogas e militarização

Temos entre os desafios atuais da luta antimanicomial a chamada guerra às drogas. Esse artifício que é o emblema, a expressão de uma organização dessa política de controle social da classe trabalhadora e que se dá principalmente pela ótica do imperialismo estadunidense, forjando uma suposta guerra às drogas como uma justificativa de controle militarizado de territórios. Uma justificativa do aumento da ostensividade, da repressão focada na classe trabalhadora e na sua fração ainda mais desfavorecida de acesso a direitos.

A chamada guerra às drogas evidencia para nós essa articulação orgânica entre políticas de repressão e políticas assistencialistas de Estado e que nesse sentido não visam, de fato, superar aquela condição que pode ser de sofrimento, que pode ser de vilipendio de direitos, mas que visa manter a tutela e o controle dessa população, se não pelo meio do extermínio ou da criminalização desses sujeitos, que seja pelo meio da patologização das suas vidas.

Desafios da luta antimanicomial na atualidade

O projeto de manicomialização da sociedade não morreu com a lei da reforma psiquiátrica. Ele encontra nas comunidades terapêuticas uma expressão desse controle da classe trabalhadora a partir da patologização e de manicomialização muito eficaz na atualidade, de modo que o medo e a sensação de insegurança provocada pela chamada guerra às drogas, enquanto esse artifício político, intencional, de controle, é um respaldo e uma justificativa social.

Há uma continuidade da segregação social, dos maus-tratos e de vilipêndio de direitos humanos. Muitos relatórios de inspeção estão aí para provar isso e vou mencionar o relatório de inspeção de comunidades terapêuticas feito pelo Conselho Federal de Psicologia com o Ministério Público Federal, como um dos exemplos dessas violações presentes nesses espaços.

E embora tudo isso muito evidenciado, a gente tem uma articulação desses setores manicomiais antigos com o Estado brasileiro, especialmente na destinação de orçamento público. Inclusive com índices muito mais avantajados do que para a própria política pública de saúde mental, para a rede substitutiva ao manicômio e toda a integração de centros de atenção psicossocial, residências terapêuticas, entre outros espaços de cuidado em liberdade.

A destituição e o esvaziamento das políticas de redução de danos, bem como o uso problemático de álcool e outras drogas, tudo isso converge para a manutenção da lógica manicomial. Enfim, encontramos sim na atenção, acolhimento e cuidado de pessoas com uso problemático de álcool e outras drogas uma dimensão que hoje está em franca disputa com a lógica manicomial. Além disso, enfrentamos outro desafio que foi evidenciado com a Resolução 487 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que disciplina o sistema de justiça brasileiro a aplicar a Lei 10.216 de 2001, a Lei da Reforma Psiquiátrica, na Justiça.

Essa resolução significa que o cumprimento das medidas de segurança aplicadas a indivíduos que cometeram crimes e foram avaliados com laudo de insanidade mental, a partir daí são absolvidos do crime. A eles não é imputada a pena de prisão, mas são colocados em tratamento compulsório psiquiátrico. Até então, isso era realizado nos chamados hospitais de custódia e tratamento psiquiátrico, vulgarmente conhecidos como manicômios judiciários. Com a resolução do CNJ no ano passado, vemos também um avanço do campo progressista na garantia de direitos.

Para que se aplique a Lei da Reforma Psiquiátrica nas medidas de segurança. Então a gente também encontra aí um outro grande desafio para articular esses dois campos de políticas da justiça e da saúde mental, mais especificamente para a garantia de direitos.

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