Fernanda Chaves: “Quem quis calar Marielle será atormentado por sua memória pelo resto da vida”

Revista Fórum [02/04/2024]

Publicada em 5 de abril de 2024 na edição 105 da Revista Fórum semanal

Foto: Marielle Franco e Fernanda Chaves.Créditos: Arquivo Pessoal/Foto cedida à Fórum pela entrevistada

Na noite de 14 de março de 2018, quando a vereadora Marielle Franco (Psol) e seu motorista Anderson Gomes eram assassinados numa rua com câmeras de segurança desligadas do bairro Estácio, no coração do Rio de Janeiro, havia uma terceira pessoa à bordo do veículo da parlamentar. Trata-se de Fernanda Chaves, 49 anos, jornalista e assessora de imprensa com histórico de atuação junto a parlamentares defensores dos direitos humanos. À época, era assessora da vítima.

No último dia 24 de março – 6 anos e 10 dias após o crime -, os irmãos Domingos e Chiquinho Brazão foram presos ao lado do delegado Rivaldo Barbosa. Eles foram apontados como os mandantes do assassinato pela Polícia Federal a partir da delação premiada do ex-PM e miliciano, Ronnie Lessa, o homem que apertou o gatilho naquela noite.

Desde as prisões e a publicização de maiores informações acerca da investigação, tem sido colocada uma discordância em torno do uso de terras no subúrbio carioca como a motivação para o crime. No entanto, Fernanda Chaves tem uma visão um pouco mais ampla e complexa sobre a forma como se deram os acontecimentos.

Em entrevista exclusiva e emocionante à Revista Fórum, a ex-assessora de Marielle Franco relembra aquela noite macabra, reconta tudo o que passou como uma sobrevivente do crime político mais impactante das últimas décadas no Brasil e faz uma análise detalhada acerca das últimas revelações do caso.

Leia a entrevista na íntegra a seguir.

Fernanda Chaves na Câmara dos Deputados em sessão solene a Marielle Franco. Créditos: Bruna Menezes

Revista Fórum – Como conheceu a Marielle e como era a dinâmica do mandato até aquela noite de 14 de março de 2018?

Fernanda Chaves – Conheci a Marielle em 2006. Era ano de campanha eleitoral e eu trabalhava no mandato do deputado federal Chico Alencar (Psol), onde era colega de trabalho do Marcelo Freixo (à época do Psol) – ele era assessor de direitos humanos humanos e assuntos de segurança pública e eu era assessora de imprensa. O Marcelo então anunciou a sua campanha naquele ano, e foi uma campanha muito dura. Me lembro que ele vendeu o seu Fiat Uno para bancar os panfletos.

Eu cuidava da agenda do Marcelo Freixo e dos materiais que seriam usados na comunicação. Era uma época ainda pré redes sociais e, cuidando da agenda dele, um dia ele virou pra mim e falou: ‘Fernanda, a Marielle da Maré vai entrar em contato com você. Ela quer se aproximar da campanha’. Então entrei em contato com ela para pegar o seu e-mail e começamos a conversar por telefone.

Toda semana eu ligava para chamá-la para panfletagens, debates, festas, e ia dando a agenda para ela e perguntando se ela poderia se encaixar em alguma coisa porque precisávamos de gente na campanha. Mas ela nunca podia ir nos eventos mais festivos, que eram de noite, até porque estava com a filha pequena. Mas um dia resolveu ir. Era uma agenda na Lapa, do coletivo de mulheres do Psol que estava redigindo uma carta sobre a pauta das mulheres aos candidatos do partido. E lá encontrei com ela primeira vez, naquele sobrado. E foi na Lapa a primeira e a última vez, anos depois, que eu vi a Marielle.

Eu não sabia quem era ela, a gente só tinha falado por telefone, mas quando bati o olho vi de quem se tratava. Estava sentada mais à frente, perto do tablado onde tinha discussão, e ela toda hora olhava para trás, para a entrada, como se estivesse me esperando. Foi a primeira vez que a gente se viu.

Na mesma época estava tendo muita manifestação contra os caveirões nas favelas e ela estava sempre presente. Depois o Marcelo Freixo se elegeu e me chamou para ir para o mandato dele como assessora de imprensa, onde eu iria coordenar a comunicação. Também chamou a Marielle para trabalhar nos assuntos relacionados às favelas e territórios, para ajudar a elaborar políticas que atendessem a essa população. Nessa época começamos a nos tornar muito amigas e isso virou uma grande amizade. Viramos comadre uma da outra. Eu fui madrinha de casamento dela e ela foi do meu casamento. Depois eu tive uma filha e ela foi madrinha da minha filha. Enfim, a gente era bem próxima.

Em dado momento, quando trabalhava para o mandato do Freixo no Rio, resolvi sair. Estava muito pesado o clima dele andando com seguranças e fui para Brasília trabalhar no Senado. Até que ela resolveu sair candidata em 2016. A gente teve essa conversa e eu me lembro que eu fiquei surpresa.

Cheguei no Rio, fui tomar um lanche com ela e ela revelou que seria candidata. Conversamos muito sobre isso e, naquelas eleições, ela desbancou as próprias previsões do Psol, de que teria meros 10 mil votos. Obteve 46 mil votos e foi eleita. Ela chegou gigante para esse mandato e me pediu para estar junto.

O primeiro ano de mandato dela foi um fenômeno, ela trabalhava muito e bem. E assim foi o ano de 2017, com muita luta que a Marielle participava. Em 2018, após o recesso de janeiro e o Carnaval em fevereiro, entramos em março com os trabalhos relativos do Dia Internacional da Mulher [8 de março], mas era só o começo do ano. Quando ocorreu o crime estávamos nas primeiras semanas de trabalho. E o resto da história todos nós conhecemos.

Revista Fórum – Como é ter que conviver com a lembrança daquela noite de 14 de março de 2018?

Fernanda Chaves – Eu penso nisso absolutamente todos os dias e de alguma forma tive que aprender a conviver com esses pensamentos. Meio que optei por não surtar, especialmente quando me dei conta do tamanho daquilo que aconteceu, da importância desse crime – que é um atentado político dos mais importantes do Brasil desde a redemocratização.

E ao passar por isso, quando você vai se dando conta do que significa, você sabe que você vai ter que lidar com aquilo para o resto da vida. E aí é uma questão de aprender mesmo, de ir lidando, falando… Outro dia eu estava conversando com uma amiga psicóloga sobre exposição ao trauma, que é um tipo de tratamento. Eu meio que pratico essa exposição ao trauma diariamente, então olho para esse trauma com alguma perspectiva. Para não sentir tanto, eu tento olhar como se fosse um filme, mas eu visito todo santo dia: alguns momentos mais, outros menos. Agora, por exemplo, desde as prisões dos acusados, é algo do qual eu estou falando o tempo inteiro.

Revista Fórum – Nesse sentido, como foi lidar, logo após o crime, com uma série de fake news que tentavam ligar Marielle ao tráfico?

Fernanda Chaves – Foram muitas camadas, muitas coisas inacreditáveis que aconteciam – além do próprio crime, em si – que era um horror, a história de um horror. Um crime desse tamanho acontecendo no centro do Rio de Janeiro em ruas que tinham câmeras mas estavam desligadas. Uma autoridade municipal passando, saindo do trabalho e acontece isso.

O Estado ainda estava sob intervenção militarizada. Sobreviver a isso é um capítulo à parte. Ainda estava tentando dar conta do que estava acontecendo e em poucas horas você já tinha fake news sobre a Marielle, o que não fazia qualquer sentido sobretudo levando em conta o tempo que isso foi feito, pensado, arquitetado… foi rápido.

Depois a gente passa a saber que as primeiras fake news sobre ela saíram com coisa de minutos depois da execução, o que é um pouco assustador e perturbador só de pensar como que isso, de alguma forma, já não estava sendo ali gestado e planejado ao mesmo tempo que o próprio crime. Foi muito perturbador, sobretudo para mim que cuidava da imagem dela.

Eu estava sofrendo as consequências de ter sobrevivido àquilo e ainda estava muito em choque com a partida dela e do Anderson. E ter passado por isso e saído com vida era outra coisa que não parecia ter sentido.

Duas pessoas, uma do seu lado e outra na sua frente, morrem imediatamente. E você sai sem nada grave. É difícil processar e entender. Você fica tentando entender o porquê. Porque é quase uma culpa. E meio disso tendo que lidar com a avalanche de coisas que saíram, porque aí também saíam coisas sobre mim. Eu era colocada no lugar de testemunha, e isso era muito perigoso. Até porque eu não tinha visto absolutamente nada, foi tudo muito rápido e desesperador.

Foi preciso o trabalho hercúleo do meu marido, que também é jornalista – porque eu não tinha a menor condição, estava em choque ainda – de falar com absolutamente todas as editorias, repórteres e jornalistas, para que eu pudesse ser trada como sobrevivente e assessora, não mais como testemunha.

Eu tinha uma filha pequena em casa à época e tentava protegê-la das informações mais assustadoras. Em algum primeiro momento a gente falou para ela que tinha sido um acidente de carro, já que eu cheguei em casa machucada com estilhaços. A orientação era para não aparecer, não falar. Mas eu iria sair do Brasil e precisava expor, de alguma maneira o que aconteceu. Por isso escolhi falar ao Fantástico, para me posicionar uma só vez, preservando minha identidade e, ao mesmo tempo, atingindo um grande público.

Lá fora, eu não desfazia a minha mala porque eu achava que a qualquer momento iria voltar para o Brasil. Eu tinha esperanças que o caso fosse solucionado ainda naquela época, só que nada aconteceu. Pelo contrário, o assunto começou a rarear na imprensa. O Lula tinha sido preso e isso começou a tomar conta da pauta. Cada vez eu via menos coisas a respeito da investigação sobre a morte da Marielle.

Revista Fórum – Você disse algumas vezes que a Marielle não se sentia ameaçada pelo Chiquinho Brazão, e que os dois tinham uma relação republicana dentro da Câmara. Te surpreendeu a família Brazão estar entre os mandantes e mentores do crime?

Fernanda Chaves – Ela não se sentia ameaçada e nunca recebeu uma ameaça. Ela não se sentia em perigo e isso não era qualquer coisa. A Marielle era ligada em segurança e não iria negligenciar uma informação ou uma suspeita nesse sentido. Ela era uma especialista em segurança e conviveu anos com o Marcelo Freixo que estava sempre cercado de seguranças. Que teve planos que foram descobertos de ataques contra ele, de assassinatos, essas coisas.

A Marielle tinha uma preocupação com a vida, no sentido de que ela amava muito a vida e não queria correr o risco. Isso era uma coisa que ela verbalizava, porque a gente sempre comentava do Freixo e também do Jean Wyllys, que nessa época estava sofrendo muitas ameaças. Ela falava que ‘se for para viver assim, eu não vivo de política. Eu não quero uma vida insegura’.

Ela tinha essa preocupação inclusive com a assessoria dela. Uma vez uma das assessoras foi xingada no ônibus. Era uma mulher trans. A Marielle ficou ligada na situação dela. Ela tinha essa expertise.

Na Câmara ela sabia quem era o Brazão, quem era a família Brazão. A Marielle participou da CPI das Milícias. Eu também participei e a gente construiu um relatório, juntas. Sou coautora do relatório da CPI das Milícias do Marcelo Freixo e ela estava muito ativa nesse período também. Quem é do Rio de Janeiro conhece esses personagens, inclusive porque o Brazão está no relatório da CPI.

Mesmo assim, ela não tinha uma relação ruim com ninguém. Ela tinha seus posicionamentos e existiam ali campos divergentes ideologicamente, mas com respeito. Nunca teve um momento tenso. Nunca teve um episódio capital que nos deixasse preocupadas com um crime encomendado pela família Brazão.

Fernanda Chaves, Monica Benício e Marielle Franco no centro do Rio de Janeiro. Créditos: Arquivo Pessoal/Foto cedida à Fórum pela entrevistada

Revista Fórum – Passados tantos anos e dadas as recentes revelações, o que ainda falta para que o crime seja completamente esclarecido? Que elementos vão compor as motivações na sua opinião?

Fernanda Chaves – Tinha essa história de zona oeste. Mas ela não votava diferente de ninguém da bancada. Talvez ela se diferenciasse no tratamento e no encaminhamento que ela dava às demandas. A Marielle trabalhava muito bem. Era uma liderança no sentido de ser uma escuta. Ela absorvia. Eu sempre falo que ela era uma esponja. A Marielle estava sempre disposta a ouvir no sentido de absorver e entender. Se chegassem lá no gabinete dela moradores da zona oeste com uma demanda contra um projeto de lei que vai favorecer a milícia, ela ia receber essa demanda.

Todos recebiam essas demandas, só que a Marielle incomodou mais que os outros. Talvez porque ela fosse uma mulher negra chegando na Câmara e isso incomoda. Eu sempre faço essa leitura de que quem arquitetou esse crime queria atingir um setor da política fluminense, um grupo, um coletivo… e escolheu uma pessoa para pagar por isso.

Mas eles erraram muito mal no cálculo. Quando você lê a investigação, vê que um dos acusados do assassinato faz uma pesquisa sobre as pessoas do Psol, então ele começa ali uma investigação por outras pessoas. Passa por familiares do Freixo, pelo próprio Freixo, pelo Chico Alencar e, em algum momento, ele para na Marielle. Então você vê que não foi uma coisa inicialmente arquitetada para ela em particular, eles queriam atingir um setor mais progressista da política. Era um ano eleitoral e queriam assustar, amedrontar, atrapalhar e desbaratar aquilo. Então escolheram ela.

Acho que a decisão de escolhê-la é atravessada por ódio, machismo, racismo. Porque “essa abusada, negra e favelada enche o saco, atende a associação de moradores e leva o morador para a defensoria pública”. Mas não conheciam a Marielle. Aquela mulher negra, favelada e lésbica não ficou gigante por conta do seu assassinato, ela já era gigante.

Revista Fórum – O que comenta sobre a participação das forças de segurança do Rio de Janeiro nesse crime, representadas pelo delegado Rivaldo Barbosa e pelo interventor federal, o general Walter Braga Netto?

Fernanda Chaves – Descobrir o envolvimento do delegado Rivaldo foi um choque. Até uns dois ou três anos atrás teve uma notícia que ele teria recebido um suborno para esconder uma prova de um crime relacionado a um bicheiro no Rio de Janeiro, o que foi muito chocante mas ele negou até o fim e não deu em nada. E as investigações não deram em nada. Agora ele reaparece dentro desse crime que matou a Marielle como sendo uma pessoa que não só atuou, como durante o pós-crime tinha como objetivo atrapalhar as investigações.

De acordo com esse inquérito ele participa da decisão e do planejamento, o que é perturbador. Eu recebi isso como um choque, porque mal ou bem a gente estava acostumado com a linha que investigava os irmãos Brazão. Mas um delegado que idealizou a divisão de homicídios e era tido como uma referência dentro da Polícia Civil, um cara que atendia prontamente, que participava de audiências e tinha um posicionamento mais progressista dentro da Polícia Civil, foi algo difícil de engolir. Tínhamos aquela figura como sendo alguém de confiança. Sabíamos que era um crime político que poderia estar envolvendo agentes. Então era preciso ter uma figura de confiança na polícia, e essa figura era claramente o Rivaldo. A gente confiava no Rivaldo e de repente vem agora uma prisão dele e um inquérito em que ele está colocado como uma das pessoas que arquitetou o plano. É chocante e muito assustador.

Sobre a intervenção federal, acredito que haja pontos que precisem ser melhor esclarecidos e trabalhados pela investigação. Vimos que o nome do Rivaldo como chefe da Polícia Civil foi questionado pelos serviços de inteligência. Então por que ainda assim ele foi escolhido? Eu acho que a investigação precisa entregar isso também. Não dá para quem está aqui no meu lugar de sobrevivente conjecturar sobre isso. Espero que as autoridades o façam.

Revista Fórum – Qual é a melhor maneira de honrar a memória de Marielle Franco?

Fernanda Chaves – Existem muitas formas de a gente seguir honrando a memória da Marielle. Eu falei esses dias numa sessão solene lá na Câmara dos Deputados, que foi feita em homenagem a ela, uma coisa que eu falava lá no início, logo depois do assassinato. Quando eu comecei a ouvir esses gritos de manifestação – ‘Marielle presente’. ‘Marielle vive’ – isso me abalava. Porque ela não está presente, não está viva e para quem era uma pessoa próxima, uma amiga, doía muito fundo em mim e causava muita revolta.

Com o tempo eu consegui ir ressignificando isso e o fato é que hoje, mais do que nunca, eu adoro falar ‘Marielle presente’. Sobretudo nesses espaços onde tem tanta manifestação de ódio. Tentaram calar a Marielle. Obviamente ela foi morta para calarem ela. Para acabar com aquela mulher que incomodava. Aquela mulher negra, favelada, lésbica. A acharam que isso ia acabar, que ia morrer junto com ela e que depois de alguns dias ninguém ia mais lembrar desse crime. Só que não conseguiram.

Não tem um lugar nesse mundo hoje em que você ande e não tenha um abraço à memória da Marielle. Você vai para a França e tem praça, você vai para a Alemanha e tem rua. No próprio Brasil não tem um bairro que não tenha um muro dedicado à Marielle. Então ela de fato está muito presente.

Quem desejou, quem planejou e quem quis acabar com a Marielle e calar sua boca está condenado a viver para o resto dos seus dias infelizes ouvindo, sabendo e vendo a imagem da Marielle. Quiseram tanto apagar a Marielle, mas ela segue aí e não para de incomodar eles. Segue alfinetando, provocando e expondo esses mesmos que hoje se regozijam nas assembleias, falando que a ‘Marielle já morreu’. Eles vão continuar ouvindo o nome dela para o resto dos seus dias e nas próximas gerações.

Além desse aspecto mais filosófico e da condenação dos mandantes e executores, tem uma outra coisa: seguir a sua luta. E o que posso colocar de mais concreto aqui é o próprio Rio de Janeiro. Precisa haver uma força-tarefa para repensar a situação de caos em que o Rio de Janeiro está. E eu acho que para seguir lutando por justiça por Marielle é preciso tirar o Rio das mãos das milícias.

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