Câmeras corporais vão deixar a PM menos violenta? Especialistas duvidam

Revista Fórum [27/05/2024]

Foto: Câmeras corporais da PM de SP.Créditos: Rovena Rosa / Agência Brasil – Edição: Raphael Sanchez/Revista Fórum

Na última semana, o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), e Guilherme Derrite, seu secretário de segurança pública, anunciaram um novo edital que prevê a compra de 12 mil novas câmeras corporais para a Polícia Militar, o que representaria um aumento de 18% no número de equipamentos disponíveis. O anúncio foi feito após governador e secretário passarem dois anos falando que as câmeras inibiam e atrapalhavam os agentes. Mas agora, de forma surpreendente, mudaram de ideia.

Na quinta-feira (23), Tarcísio e Derrite elogiaram as novas câmeras corporais. O governador apontou que o Copom (Centro de Controle da PM) teria com elas a possibilidade de “voltar na linha do tempo” da gravação enquanto a ocorrência está em andamento, o que atualmente não é possível. Ao contrário do equipamento original, que grava a jornada do agente de forma ininterrupta, as novas câmeras poderão ser controladas pelo Copom e pelo próprio agente.

O secretário emendou, fazendo um elogio ao novo sistema: “As gravações vão funcionar como se fosse um vídeo no YouTube”. Derrite ainda garantiu que o agente que não acionar a câmera será punido no regulamento disciplinar da PM.

A ideia foi muito criticada. Cláudio Silva, o ouvidor da PM-SP, soltou uma nota em que condenou Tarcísio por fazer “modificações drásticas” por parte do governo na licitação e apontou as “idas e vindas” do governador em relação ao tema. Samira Bueno, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, disse ao jornal O Globo que o governador está simplesmente tornando o programa de câmeras corporais inócuo com a nova proposta. Ela também aponta que o controle da câmera pelo policial pode atrapalhar investigações e lembra que o governador prometeu acabar com tal projeto ainda em campanha.

Derrite e Tarcísio. Créditos: Mônica Andrade/Governo do Estado de SP

Nessa segunda-feira (27), a Defensoria Pública de São Paulo e a ONG Conectas Direitos acionaram o Supremo Tribunal Federal para pedir a revisão do edital de Tarcísio. As entidades pediram que o ministro Luís Roberto Barroso olhe para a ação com urgência, uma vez que a abertura da licitação para a compra das novas câmeras será em 10 de junho. Também pedem que o equipamento seja distribuído aos batalhões mais letais da cidade e permaneça fazendo gravações ininterruptas durante o turno completo do agente.

Tarcísio alega que as gravações atualmente são feitas em baixa qualidade e que o agente já precisa acionar um botão para que a gravação seja mais definida e com áudio. No entanto, a Conectas aponta que imagens de baixa qualidade já foram utilizadas para denunciar abusos policiais durante a Operação Escudo.

Em setembro passado, quando ainda ocorria a primeira Operação Escudo na Baixada Santista, entrevistamos Gabriel Sampaio, então diretor de Litigância e Incidência da Conectas, sobre o tema.

“As câmeras corporais constituem importante ferramenta para o controle externo da atividade policial, para a prevenção e responsabilização de abusos praticados e para a própria produção probatória, inclusive de crimes praticados contra policiais. Em diversos contextos das práticas criminosas, as câmeras podem oferecer elementos importantes para desvendar essas práticas e constituírem provas importantes para a atuação do Estado e da própria polícia e até para a prevenção da violência praticada contra agentes públicos. As câmeras corporais são ferramentas imprescindíveis para qualquer política de segurança pública que seja estruturada no Estado de São Paulo e que tenha por intuito reduzir a violência institucional. Nós vemos com extrema preocupação que essa política de implementação das câmeras corporais esteja sendo desmantelada”, disse à época.

Mas será que a tecnologia, por si só, pode surtir esse efeito? Aparentemente não. De acordo com dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública publicados no último domingo (26) em matéria da Folha, o número de mortes causadas por PMs oriundos dos 18 batalhões que usam câmeras corporais saltou de 45 em 2022 (ainda sob a gestão João Doria) para 84 em 2023, o primeiro ano da gestão Tarcísio. A alta é de 86% em relação ao ano anterior.

PM agride jovem no metrô de São Paulo. Créditos: Reprodução/Redes Sociais

Para compreender melhor a questão, a Fórum entrevistou Aline Passos, advogada e doutora em sociologia pela Universidade Federal de Sergipe (UFS), e Acácio Augusto, cientista político e coordenador do Lasintec (Laboratório de Análise em Segurança Internacional e Tecnologias de Monitoramento) da Universidade Federal do Estado de São Paulo (Unifesp). Ambos os pesquisadores apontam que mais do que a própria câmera ou qualquer outra tecnologia que venha a regular a atividade policial, a raiz da violência da corporação é política e está apegada às próprias estruturas das polícias.

“Pelo que vi, os policiais agora controlam essas imagens, como era de se esperar, podendo fazer com que muitas sequer cheguem a ser produzidas. Acho de uma inocência quase estúpida achar que câmera em fardamento muda como o Ministério Público e o Judiciário funcionam em casos de violência policial. Há séculos, policiais são absolvidos por legítima defesa, mesmo com provas irrefutáveis, como tiros na nuca e outras evidências. Não é a tecnologia em jogo que determina o discurso. Não é a tecnologia em jogo que muda o fato de que o poder de decisão sobre esses casos está nas mãos de pessoas que, no fundo (ou no raso), acreditam que bandido bom é bandido morto, mesmo que não pronunciem isso de forma sensacionalista”, comentou Aline Passos.

Acácio Augusto, cientista político/ Aline Passos, advogada e socióloga (Créditos: Arquivo pessoal)

A pesquisadora acredita que, para termos uma polícia “mais de acordo com o que se espera num país democrático”, seria necessário rever a própria estrutura das polícias e, em última instância, refundá-las.

“Em primeiro lugar, se olharmos a partir da segurança pública, não temos uma democracia. Não tem democracia que se sustente sobre um genocídio e nossa política de segurança pública é genocida. Ela é a continuidade dos poderes senhoriais da escravatura metamorfoseados em ‘interesse público’. Nesse sentido, mais democracia se faz com menos polícia. Menos violência se faz com menos polícia. Porque aí a gente reduz o arrego do tráfico, as milícias, a circulação ilegal de armas, a letalidade. Então, a melhor política de segurança para um estado democrático é reduzir suas polícias”, analisou.

“Eu não sei até agora como SP elegeu Tarcísio e estou perplexa com a tentativa de alguns setores do debate público agora tentarem fazer uma imagem democrática dele. Tarcísio vem e permanece na extrema direita. Dito isto, penso que a oscilação entre defender e ser contra as câmeras advém do fato de que elas não têm o condão de alterar o caráter da política de genocídio que chamamos de segurança pública. A prova de que não têm poder de mudar nada é que um cara como Tarcísio pode dormir contra e acordar a favor. Políticos como ele podem surfar ao sabor da opinião pública, inclusive de especialistas diretamente ligados à venda (porque é um negócio, envolve consultorias, ONGs etc) dessa ‘nova salvação’, que vai gerar, em seguida, uma necessidade do próximo ajuste, da próxima consultoria, do próximo edital etc.”, finaliza Aline.

Acácio Augusto, por sua vez, diz que esse tipo de introdução de tecnologia de monitoramento, na verdade, é uma tendência geral para todos os lados, inclusive para a polícia. Seguramente, de alguma forma, em algum momento, haverá esse tipo de controle, seja com imagem, seja com georreferenciamento. Sobre a possibilidade de diminuir a letalidade policial, ele vai numa linha parecida à de Aline Passos e sugere que nossas políticas de segurança pública são tão desastrosas e violentas que, se analisadas sob os mesmos critérios de outras áreas como saúde e educação, naturalmente haveria um desfinanciamento por parte do Estado.

PMs acusados de recolher cápsulas em Paraisópolis após troca de tiros que feriu criança. Créditos: Reprodução

“Se fossem aplicados na segurança os critérios de avaliação de política pública que são aplicados para saúde e educação, nós teríamos cortes gigantescos. Além disso, para fazer uma metáfora futebolística, ela é igual o VAR, e só vai introduzir uma camada a mais de disputa e um elemento a mais de disputa sobre a constituição da verdade em torno de um fato criminal. E a gente sabe que a última palavra em torno de um fato criminal acaba sendo a polícia, que é quem faz a detenção no início e que mais tarde dará o depoimento que mais conta no tribunal”, disse o pesquisador.

Ele sugere que, antes de mais nada, se faça um levantamento acerca do dinheiro e dos recursos públicos que estão sendo usados. “Já que eu usei a metáfora do VAR, na Inglaterra já está se discutindo de não usar mais o VAR, porque o problema não está na tecnologia, não está na falta de informação, está na decisão política que pesa sobre a forma de distribuição da segurança no Estado de São Paulo”, completou.

Bola de cristal do crime

“A gente não pode esquecer que, em paralelo às matanças e a essa polêmica em torno das câmeras corporais, está em andamento o projeto Muralha Paulista, que é a versão 2.0 do Detecta e que envolve, inclusive, uma parceria com uma empresa da Arábia Saudita, coisa amarrada quando o Bolsonaro ainda era presidente do Brasil”, lembrou Acácio Augusto.

O pesquisador faz referência ao agora chamado projeto “Bola de Cristal”, fruto de parceria entre o governo Tarcísio e o Edge Group, estatal de tecnologia da Defesa dos Emirados Árabes Unidos. O projeto é inspirado em séries como ‘Minority Report’, mas, ao invés de ter agentes capazes de prever o futuro como na ficção, combinará dados de câmeras de segurança, drones, inteligência artificial e análise de dados para identificar padrões de crimes, de criminosos e de áreas de incidência.

PM reprime na Alesp estudantes que protestavam contra implementação de escolas cívico-militares em SP. Instituições funcionam como cabides de empregos para policiais e ex-policiais. Reprodução/Redes Sociais

Só para ilustrar, e de maneira não literal, é como se agora houvesse uma espécie de ‘Robocop’ – para manter a analogia com o cinema – que conseguisse adivinhar quando um crime seria cometido – por isso a “Bola de Cristal” – e efetuasse a repressão antes mesmo da ocorrência. Entre os três objetivos estratégicos do projeto estão: a estruturação de dados desses vários sistemas, a análise e integração de diferentes soluções de segurança e o estabelecimento de uma resposta mais rápida e eficiente.

“A grande questão aí não é se tem câmera ou não tem, quem que vai ter domínio sobre as câmeras e qual vai ser o efeito ou não dessas bodycams imediatamente em relação à violência policial. A grande questão é a própria estrutura da polícia, a organização, a forma militar como ela está organizada e com o agravante dessa tentativa de manter o controle das câmeras na mão dos comandos da PM, que é isso que o Derrite e o Tarcísio estão fazendo agora, só reforça que o grande problema é como a polícia está organizada, não só na sua forma militar, mas, sobretudo, nesse momento, comandada por um ex-capitão da PM, que foi integrante do 14º Batalhão de Osasco, que é, sabidamente, o batalhão mais matador de São Paulo. Assim, a própria polêmica em torno das câmeras corporais acaba sendo uma forma de mascarar a discussão sobre a própria função da polícia, porque a gente podia discutir, por exemplo, quanto o governo do Estado gasta com segurança pública e quais são os resultados objetivos disso, em termos de sensação de segurança da população, redução de ocorrência letal e mesmo de proteção da propriedade. A entrega é baixa”, finalizou.

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